Livro – A Lince e a Raposa (Cristiane Schwinden) – Romance Lésbico

amyscansmaio 26, 2019

Sinopse: Em A Lince e a Raposa não tem valentões tentando salvar o mundo. Esse romance distópico é protagonizado por duas mulheres, carregado de ação, humor e paixão. A história se passa num mundo destruído pela 3ª Guerra, onde os humanos convivem com outras espécies.
Anna é uma híbrida solitária cumprindo suas missões mercenárias. Jennifer é uma bem humorada garota, tentando defender sua vila dos fortes Titans.
Entre as missões executadas, segredos pessoais são desvendados no decorrer da história, mudando o rumo de suas vidas. Ao final, a sensação que fica é a satisfação de ter acompanhado uma grande história de amor entre mulheres.

Resenha A Lince e a Raposa

[…] Nesse livro da Cristiane Schwinden – que por sinal é criadora da editora que publica o livro, a Lettera -, o romance não é exatamente o foco. Ele existe, obviamente e nos apaixonamos um pouco demais pela história da Anna e da Jennifer, mas rola também um grande amor por toda a trama da história. É complicado (pelo menos para mim), não ficar com os olhos brilhando diante de uma boa distopia embalada em um romance. Romance esse que passa longe de estar ali apenas para conquistar os leitores. […]
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Detalhes do Livro A Lince e a Raposa

  • Formato: eBook Kindle
  • Tamanho do arquivo: 3680 KB
  • Número de páginas: 1203 páginas
  • Editora: Editora Lettera; Edição: 1 (10 de novembro de 2018)
  • Vendido por: Amazon Servicos de Varejo do Brasil Ltda
  • Idioma: Português
  • ASIN: B07KDL5YYW

Prévia do Livro: A Lince e a Raposa eBook e PDF

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Capítulo 1 – Invasão

Jennifer acordou de sobressalto após um pesadelo, consultou o relógio de pulso sobre o criado mudo e viu que estava atrasada, era quase oito da manhã. Não iria trabalhar no porto, havia um destino mais nobre naquela manhã. Coçou os olhos ainda sonolenta, prendeu os cabelos de qualquer jeito e seguiu para o banheiro. Vestiu-se rapidamente com sua jaqueta jeans preferida por cima da camisa xadrez azul e preta, calçou as botas, chutou um baldinho de comida japonesa no chão da sala do pequeno apartamento, pegou qualquer coisa na geladeira, e partiu para o alto do seu bairro.
Ao meio-dia as máquinas chegaram à sua rua residencial decadente na cidade de Bridgeport, no sul de Connecticut. Dois guindastes de demolição, um deles ostentando um grande pêndulo, posicionou-se em frente a um conjunto de pequenos prédios cinzentos e visivelmente deteriorados pelo tempo.
Era início de setembro, uma brisa fria soprava e o céu nublado deixava o clima daquela terça-feira ainda mais carregado. Três carros chegaram algum tempo depois, estacionaram quase em sincronia atrás das máquinas. Alguns homens saíram do carro e caminharam em direção às edificações julgadas condenadas.
Eram moradias simples, mas em perfeitas condições de uso, aproximadamente doze famílias habitavam o conjunto, e assim como a maioria dos moradores do bairro, estavam em situação irregular no local.
Quando ouviram as máquinas chegando mais moradores saíram, se juntaram à Jennifer e ao pequeno grupo que estava reunido protestando ao lado de um dos edifícios, onde morava Peter e sua esposa Lisa.
Os homens que haviam descido dos carros eram de uma raça bastante semelhante à dos humanos: os Titans. Eles haviam se revelado ao mundo há apenas cem anos, embora tenham vivido de forma sutil entre membros de todas as classes da sociedade ao longo dos séculos sem serem detectados. Eles eram superiores aos humanos em força, agilidade e explosão muscular, o que lhes permitia vencer grandes distâncias sem muito esforço. Possuíam o poder de regeneração e cura um pouco mais acelerada, entretanto a característica mais invejada pelos humanos, sem dúvidas, era a elevada expectativa de vida, com o envelhecimento num ritmo duas vezes mais lento.
Os Titans que haviam chegado eram homens grandes e corpulentos, trajavam paletós sem gravatas e camisas com os primeiros botões abertos, tinham certo ar de arrogância.
Os moradores que estavam reunidos já esperavam a chegada dos Titans e das máquinas. Eles haviam sido notificados que aquela região seria desapropriada, os prédios seriam demolidos, sem negociação ou diálogo. Tudo agora era de propriedade do grupo miliciano que comandava a região. Eles traziam a notificação e a escritura atestando serem os mandatários daquela área, a intenção era construir ali uma sede nova, um quartel general de onde poderiam coordenar suas ações.
Com os papéis em mãos, se aproximaram caminhando calmamente, olhando ao redor, apenas cautelosos. Alguns seguranças faziam a escolta, logo atrás.
O grupo que fazia oposição a demolição era formado por moradores do bairro, que foram defender o direito destes moradores de permanecerem em suas casas. Realmente não possuíam as escrituras, mas os documentos apresentados pelos Titans não pareciam oficiais.
Jennifer logo tomou a frente e posicionou-se de forma imponente, barrando a passagem da milícia. Logo atrás estava sua melhor amiga Becca, com sua fisionomia de adolescente e cabelos longos com franja, Bob, um magricela de cabelo marrom desarrumado e óculos, além de Sam e Lindsay, que eram irmãs.
Depois da grande guerra, que perdurou por cinco anos, a população dos Estados Unidos foi reduzida a um décimo, havia cidades inteiras devastadas por bombas e ataques. Outras, como Bridgeport, haviam sobrevivido ao bombardeio. Era uma época de escassez de recursos básicos e muitos jovens moravam sozinhos após ficarem órfãos.
Jennifer fazia parte desta estatística, morava sozinha num pequeno quarto e sala num prédio cor de tijolo no fim da rua, na parte baixa da vila. Tinha 22 anos e vivia de pequenos serviços no porto.
— Quem vocês pensam que são? Ninguém é dono destes prédios, nem vocês. Esse pessoal chegou primeiro, tanto lugar desabitado nesta cidade e vocês querem derrubar logo onde tem gente morando? — Jennifer falou alto, com segurança, não era de grande estatura, tinha pouco menos de 1,70cm, mas se portava com vigor e parecia falar com autoridade. Tinha um ar invocado, olhos castanhos e pequenos que conservavam um ar inocente, prendia seu longo cabelo castanho claro num rabo de cavalo, ficando algumas mechas soltas que teimavam em cair sobre seu rosto.
— Escute mocinha, não viemos negociar, sugiro que saiam do local para que ninguém se machuque. — O chefão fez um gesto com a mão chamando uma pessoa atrás dele, falou algo no ouvido e logo em seguida os motoristas das máquinas receberam autorização para avançarem.
O pequeno grupo de Titans recuou enquanto as máquinas avançavam, seguiram para os carros e alguns se recostaram, olhando as máquinas começarem o trabalho. Os moradores dos prédios saíram da frente do maquinário, mas os manifestantes resolveram ficar e tentar evitar a destruição a qualquer custo.
Jennifer chamou Bob e subiram em uma das máquinas, os outros foram para frente do outro monstro de ferro. Antes que ela conseguisse entrar na cabine, sentiu alguém a puxando violentamente pela cintura. Num movimento rápido ela se desvencilhou dos braços do segurança e correu em direção à outra máquina, mas novamente antes de alcançar seu objetivo, foi detida por um brutamonte, que a derrubou no chão com truculência e prendeu suas mãos às costas.
Debateu-se o quanto pode, mas foi prensada ao chão por um segundo segurança que lhe empurrou as costas com o joelho. Ainda no chão ela ergueu a cabeça e viu seus amigos sendo algemados com amarras. Sentiu a terra gelada abaixo do seu corpo, uma raiva visceral percorreu suas veias naquele instante.
Permaneceu assim por mais alguns minutos, um pequeno e velho ônibus amarelo chegou ao local, e assim que ele abriu as portas, ela deduziu qual seria o destino de todos: seriam levados pelos Titans, e numa época onde as leis já não eram respeitadas, sabia que podia esperar pelo pior.
Alguns grupos de Titans possuíam sedes que eram verdadeiros quartéis, as leis que respeitavam era a que eles próprios haviam criado, um regimento interno, apesar de ainda responderem às leis humanas e estarem passíveis das penalizações que elas poderiam ser impostas a todos os cidadãos.
Um a um Jennifer viu todos serem levados pelos braços para dentro do ônibus, enquanto os representantes Titans apenas observavam. O que parecia ser o chefe deles se mantinha no celular, sem se abalar com a situação e com a violência que havia presenciado.
Havia chegado a vez de Jennifer ser levada, ela teve também suas mãos presas com as amarras plásticas transparentes, fora brutalmente arrastada pelo segurança para o ônibus e a jogaram no banco de trás. Após se certificar que todos já estavam no interior, ele desceu e deu dois tapinhas na porta do ônibus, avisando para o motorista que já podia fechar e partir.
O ônibus seguiu pela rua até chegar à rodovia, que cortava a cidade passando por áreas destruídas, plantações e algumas poucas casas.
Jennifer levantou-se do corredor e sentou no banco, todos estavam sentados próximos a ela, assustados se entreolhavam e olhavam para Jennifer, como se esperando alguma solução, um ato salvador.
— Não fizemos nada de tão grave, será que estão nos levando para as prisões clandestinas? Ouvi falar que eles têm verdadeiros calabouços… — Lisa falou temerosa.
— Agora estamos ferrados… — Sam balançou a cabeça. O silêncio se instaurou por um momento.
— Nós vamos sair daqui, vamos pensar em algo. — Jennifer irrompeu o silêncio, olhando para os lados procurando ideias.
O motorista do pequeno ônibus, que um dia havia sido um comboio escolar, era um senhor de cabelos grisalhos, magro, não era um Titan. Apenas um dos seguranças havia seguido junto com o ônibus, ele permanecia ao lado do motorista, apoiando o pé esquerdo na tampa do motor, olhava de soslaio de vez em quando para trás e seguia conversando com o condutor.
Alguns minutos se passaram enquanto Jennifer bolava um plano para fugirem das mãos dos Titans. Se inclinou na direção dos amigos e falou em voz baixa, calmamente:
— Estamos em maior número, temos que usar esta vantagem, eu tenho um plano, mas para isso todos precisam estar seguros do que vamos fazer, não teremos uma segunda chance.
— E qual é o plano? — Indagou Bob.
—  Não olhem agora, mas eu guardo um punhal dentro da minha bota, eu vou usá-lo contra o grandalhão, preciso que vocês dois me ajudem com ele, vocês meninas vão pra cima do motorista e tentem assumir o volante quando neutralizarmos o segurança.
— Mas… Você vai matar o segurança?
— Becca, não faça perguntas difíceis.
— Ok, você vai dar o sinal para atacarmos, não é? — Sam perguntou, assustada.
— Sim. Virem-se para frente, sentem-se normalmente, disfarcem. Vou avisar quando for a hora. Eu vou na frente, Bob e Peter em seguida, depois vocês seguem atrás de Peter.
Jennifer estudou o comportamento do segurança, tirou o punhal atrás do banco e cortou suas amarras, discretamente cortou dos companheiros também. Esperou o segurança se virar para trás para vigiá-los, como estava fazendo de tempos em tempos, assim que voltou a olhar para frente, deu o sinal.
— Agora. — Falou baixinho, gesticulando para frente.
Jennifer correu para frente, ergueu o punhal firmemente e tentou feri-lo na perna, ele reagiu e não deixou outra opção a não ser acertá-lo em algum lugar mais crítico. Desvencilhou dos braços do segurança e cravou-lhe no abdome, os rapazes o derrubaram para cima do motorista, que perdeu o controle do ônibus. Desgovernado, o veículo seguiu acelerado até sair da estrada, capotando num declive e girando uma vez ao redor do seu próprio eixo.
Com o ônibus já parado, Jennifer levantou-se com dificuldade afastando alguns cacos dos vidros, se certificou que o segurança não era mais uma ameaça, estava desacordado. Seu grupo parecia atordoado, movendo-se lentamente, assimilando o que acontecera.
— Vão dormir aqui? Todo mundo saindo pelas janelas quebradas! Eu vou checar nossos amiguinhos.
Enquanto os outros saiam do ônibus, Jennifer pegou a arma do segurança e fixou em seu cós. Recuperou o punhal cravado e guardou novamente na bota, com as amarras que retirou do seu bolso o amarrou por precaução. Após prender também o motorista ao volante, abandonou o local rapidamente.
— E agora, vamos pra onde? Não tem nada aqui, não vejo nenhuma casa! — Desesperou-se Lindsay.
— Estamos no meio do nada… — Peter falou olhando em volta, tinha um pequeno corte na cabeça.
— Vocês estão bem? Alguém se machucou? — Questionou Jennifer.
Percebendo que todos estavam estáticos, em choque.
— Parem de se preocupar com onde nós estamos por enquanto. Quero que vocês procurem por algum ferimento, e então seguiremos.  Continuou.
Alguns hematomas, pequenos arranhões e cortes puderam ser vistos na maioria.
— Acho que quebrei meu braço… — Lisa mostrou o braço, com um semblante dolorido.
— Aguente firme, vamos achar algo para imobilizar, logo estaremos em casa e tudo vai ficar bem. — Tranquilizou seu marido, Peter.
— Peter, você bateu a cabeça? Não podemos voltar pra casa agora, os filhos da mãe estão lá, e já devem estar nos procurando. Vamos nessa direção. — Jennifer apontou para frente, nem para um lado nem para outro da estrada.
— O que tem pra lá?
— Não sei, mas tem a praia. Seguiremos na direção do litoral, sempre tem casas por lá e podemos achar alguma não habitada para ficarmos até a poeira baixar. E vamos imobilizar seu braço assim que possível, tá bom, Lisa?
Lisa acenou positivamente com a cabeça.
***
No mundo inteiro, principalmente na América, havia inúmeras casas destruídas ou inabitadas, após os ataques do chamado Eixo do mal, alcunha dada por George Bush ao conjunto de países contrários aos Estados Unidos e seus aliados. Esse conglomerado era liderado por alguns países do oriente médio e asiáticos, alguns deles com programas nucleares avançados.
Os ataques e bombardeios, que inicialmente eram perpetrados a distância, passaram a acontecer em solo americano e na maior parte dos países europeus, atingindo em menor proporção os países da África, América Central e do Sul. Os danos foram imensuráveis para ambos os lados, os governos foram se enfraquecendo, comunicação e tecnologia se tornaram cada vez mais precários, os maiores alvos foram as indústrias, torres de comunicação e bases militares, em todos os continentes. As temidas bombas atômicas fizeram os maiores estragos.
Na atual conjuntura, o governo convencional agora é chamado de governo dos humanos pelos Titans, que não se sentiam mais representados por estes governantes e suas leis. Passados pouco mais de dois anos após o fim da terceira guerra, as prioridades de reconstrução nos tempos atuais eram para prover serviços básicos como água, energia e alimentação. Eram tempos difíceis, mas de esperança.
***
O grupo de sete pessoas seguia campo adentro em direção ao litoral. Após caminhar alguns minutos por um campo que parecia já ter sido uma plantação, avistaram uma grande casa de dois andares, escura, próxima à praia, ficava uns dois metros acima do nível do mar. A propriedade era rodeada por uma cerca de grades de ferro, escurecidas pelo tempo. A medida que se aproximavam, procuravam por algum sinal de moradores, a casa parecia antiga, mas possuía todas as portas e janelas em bom estado, que era um sinal que não estava abandonada.
— Será que alguém mora aí? — Perguntou Becca.
— Saberemos em alguns segundos… — Jennifer sacou a arma, abriu a porta da frente devagar, cautelosa, espiou para dentro com a arma em riste. Lentamente olhou em todas as direções até se certificar que não havia ninguém por ali.
— Hey pessoal! Tudo limpo! Vamos entrar, mas fiquem alertas. — Preveniu.
A casa tinha uma sala ampla logo na entrada, com sofás e lareira, iluminada por grandes janelões no alto. Do outro lado havia uma escada, um corredor e dois pilares cinzas, largos. Parecia habitada, porém ninguém foi visto ou percebido naquele momento.
Jennifer andou a passos lentos na direção das escadas, olhando ao redor. Aproximava-se de uma das pilastras, quando foi surpreendida por alguém que a segurou pelo punho, travando seu braço que empunhava a arma. Logo recebeu uma forte gravata por trás, não conseguiu identificar quem a detivera.
— Solte a arma. — Ordenou a pessoa que a imobilizou, falando diretamente no seu ouvido. Deram alguns passos lentos para frente, na direção da claridade e dos outros membros do grupo. Neste momento já tinha a atenção de todos, que olhavam assustados aquela mulher com Jennifer em seu poder.
— Já… Soltei. Já soltei! — Jennifer abriu a mão esticando os dedos, largando assim a arma no chão.
— Só estamos procurando abrigo, não queremos fazer mal a ninguém! — Bradou Becca, amedrontada. O restante do grupo olhava perplexo.
— É… Verdade… Pode me… Soltar. — Jennifer falava com dificuldade, puxando com as duas mãos o braço que a sufocava, numa tentativa de livrar-se dele. Já havia percebido que era uma mulher que a segurava.
— Não temos outras armas, nos reviste se quiser… Não somos pilhadores, nem bandidos! — Bob, assim como os demais, permanecia próximo a porta de entrada, acuado.
Num gesto brusco a mulher soltou Jennifer, que virou-se rapidamente. Deu alguns passos trépidos para trás, com as mãos no pescoço, buscando ar.
Conseguiu enfim ver a pessoa que a havia imobilizado, aparentava ser uma Titan ou uma híbrida, o cruzamento de humanos e Titans. Era uma mulher alta, cabelos negros na altura dos ombros, olhos azuis gélidos e um semblante permanentemente sério.
Ela abaixou-se rapidamente, mantendo o olhar neles, recolheu a arma caída no chão e apontou para o grupo.
— O que vocês querem aqui? — Falou de forma calma, porém ríspida. Sua voz tinha um timbre suave, baixo.
— Nós estamos meio que perdidos… Na verdade precisamos nos esconder ou fugir. A sua casa foi a única que avistamos por aqui. — Jennifer franziu a testa. — Fala sério, abaixe essa arma, realmente parecemos ameaças?
Ela hesitou um pouco, mas acabou baixando a arma. Aproximou-se, olhando para todos, percebeu que não pareciam de fato ameaças, nem bandidos.
— Estão fugindo de quem? — Perguntou voltando o olhar para Jennifer.
— Irritamos alguns Titans, aqueles porcos milicianos. Eles nos levavam para algum lugar pela rodovia quando conseguimos fugir. Acho que matei um deles… E aqui estamos, procurando um lugar seguro. — Ela respondeu.
— Vocês mataram um miliciano? Sabem que isso não vai ficar assim barato. Eles virão atrás de vocês, não tem a menor compaixão com os humanos que os perturbam.
— Você é um deles?
— Titan? Não, sou uma híbrida, estou neutra na batalha de vocês.
— Mas não pode nos ajudar? Pelo menos nos dê alguma orientação do que fazer, você os conhece melhor que nós.
— Ficar aqui seria suicídio.
— Por quê?
— Vocês realmente não sabem o que acontece com quem comete alguma infração grave com eles? Vão mandar gárgulas para dar um jeito em vocês.
— Achava que isso era uma lenda…
— Acredite, assim que descobrirem o que vocês fizeram, mandarão as gárgulas… — Olhou por cima contando quantos eram.
— Vocês estão em sete, provavelmente mandarão dois ou três. Conheço o regimento das milícias de Titans. Eles não respeitam as leis humanas, mas mesmo assim temem a justiça de vocês, por isso usam gárgulas para o trabalho sujo.
— Fugir é nossa única opção então?
— Se eu abrigá-los ficarão encurralados aqui dentro, não terão chances contra três gárgulas ao mesmo tempo, mas talvez se fugirem eles não os alcancem, e se alcançarem, talvez seja um por vez.
— E quem nos garante que é isso mesmo que vai acontecer? — Peter parecia indignado. — Ela pode estar falando isso só para livrar-se de nós!
Ela caminhou rápido na direção de Peter.
— Escute garoto, você não está em posição de fazer escolhas. — Fez uma pausa e continuou num tom mais piedoso. — Não, não estou tentando me livrar de vocês, apesar de ser o mais sensato a fazer nesse momento.
— Desculpe… Estamos desesperados, sei que invadimos sua casa e… — Jennifer falou como se pedindo desculpas por Peter, se aproximando dela.
A mulher com ar misterioso e olhar forte observou todos com certa impaciência, e voltou a se dirigir a Jennifer.
— Tem um trilho de trem há uns dois quilômetros a oeste daqui, costuma passar um comboio de carga no início da tarde, seguindo para o nordeste. Vocês podem caminhar até lá e subir em algum vagão, pelo menos estarão se distanciando. É a melhor chance no momento.
— O caminho é pela mata? Basta seguirmos numa linha reta para o oeste que encontraremos os trilhos? Tem alguma trilha até lá? — Questionou Jennifer, preocupada e confusa. Ela se agarrava ao único fio de esperança que parecia surgir naquele momento, enquanto sua interlocutora a olhava como se procurando a melhor decisão.
— Ok… Eu os levo até lá, senão é bem provável que se percam e… Bom, eu vou pegar meu casaco.
Ela subiu as escadas e voltou terminando de vestir um casaco preto, que ia até a altura dos joelhos. Calça, suéter de poliéster e botas pretas completavam a sobriedade do seu visual. Jennifer se postava na porta, vigiando a entrada
— Desculpe pela invasão, e por abusar da sua bondade. — Disse Jennifer, quando ela se aproximou.
A observou por um instante, era apenas uma garota qualquer à porta da sua casa, mas era suficiente intrigante para ter toda sua atenção.
— Não é má vontade minha em não abrigar vocês aqui. Seria uma carnificina, acredite, e não tenho um carro para levá-los para longe. — Ela também se recostou no batente da porta. — Tome, vai precisar dela. — Falou devolvendo-lhe a arma.
Jennifer pegou a arma e sorriu de leve. — Acho que nem sei usar…
— Já está destravada, basta puxar essa parte aqui de cima para trás, está vendo?
— É… Parece fácil, o que não é uma coisa boa em se tratando de uma arma em minhas mãos. A propósito, meu nome é Jennifer, prazer. — Falou esticando a mão, num tom amistoso.
— Anna. — Hesitou um pouco e correspondeu ao aperto de mão, olhando Jennifer nos olhos.
E foi assim que sua guarda começou a baixar.
Jennifer voltou a guardar a arma no cós da calça. Saíram pela vegetação baixa, caminhando a passos rápidos, enquanto improvisavam uma tala no braço de Lisa.
Já passava das duas da tarde quando chegaram até os trilhos, tentavam enxergar no horizonte algum sinal da locomotiva. Anna gesticulou para que não se movessem, olhando para o alto, atenta.
— Uma gárgula, estão vendo? Lá daquele lado, está vindo na nossa direção, permaneçam próximos uns dos outros! — Ordenou Anna, tirando dois punhais do casaco, empunhando um em cada mão.
— Meu Deus, e agora? Como vamos matar isso? — Lisa se desesperava.
As gárgulas eram uma raça humanóide usada pelos Titans como seus animais de caça. Eram comumente chamados de dragões dos ares por serem alados e possuírem pele rochosa cinzenta como grandes lagartos de pedra. Podiam usar suas asas para planar ou voar, mas a utilização mais mortal era como lanças afiadas durante seus ataques.
A gárgula se aproximou do grupo num voo lento, circular, até finalmente pousar em terra firme. Jennifer sacou a arma e disparou repetidamente contra a criatura, que parecia não se ferir com as balas.
— Jennifer, não adianta! Vá para junto dos outros! — Anna o rodeava em posição de ataque, tentou uma aproximação repentina para desferir um golpe, mas a gárgula a arremessou para trás com a asa, como num tapa, abrindo-lhe um corte no supercílio.
A gárgula caminhou na direção do grupo. Ao ver a cena, Jennifer adiantou-se e se colocou entre a criatura e seus amigos, agora com seu punhal ensanguentado nas mãos, já que não havia mais balas na pistola.
— Volte para a porra do lugar de onde você saiu, seu miserável! — Jennifer a encarava, havia parado seu movimento com a investida dela. — Venha, eu vou enfiar isso aqui no seu coração!
A gárgula aproximou-se e rapidamente a segurou pelo pescoço, a erguendo do chão com uma mão apenas.
— Solta ela! Solta ela! — Gritou Becca, que permanecia abraçada com os outros, assistindo tudo em pânico.
A gárgula arremessou Jennifer, a fazendo cair longe, de costas. Anna aproveitou a distração para se aproximar por trás, cravando a adaga com a mão esquerda no pescoço de pedra da fera, que soltou um ganido estridente. Após cambalear com as mãos no ferimento, caiu inerte.
Anna se aproximou devagar, mexeu no corpo com um pé para se certificar que estava morto, abaixou-se e retirou sua faca, guardando novamente dentro do casaco.
— Morreu? — Becca olhou receosa o corpo no chão. Anna assentiu com a cabeça.
— Você está bem? — Anna se aproximou de Jennifer, a tocando no braço.
— Estou viva, o placar ainda está a nosso favor.
Todos continuavam olhando incrédulos a criatura que jazia no chão, Anna voltou a perscrutar os céus.
— Como pode não ter morrido com meus trezentos tiros? — Questionou Jennifer, exagerando.
— Você já viu como é a pele dela? Balas não perfuram essa carapaça, não essas balas comuns. — Explicava Anna, pacientemente.
— Mas adagas sim?
— Não é questão de tipo de arma, eles possuem uma região vulnerável, onde a pele é menos espessa: o pescoço. Então se você atinge a coluna vertebral dele, seja com uma adaga cravada a fundo ou um tiro certeiro, tem grandes chances de acabar com ele.
— Agora que você me diz isso…
— Vamos esperar o trem de carga, e torcer para não aparecer outro desses tão cedo. — Anna orientou.
Depois de aproximadamente trinta minutos o barulho do trem se aproximando pode enfim ser ouvido. Todos se levantaram do chão onde estavam sentados, ao lado dos trilhos.
— Vamos para trás daquelas árvores, para que não nos vejam e deduzam o real objetivo de ter um grupo de pessoas observando um trem passando. — Jennifer apontou para algumas árvores baixas, com poucas folhas.
Ela percebeu Anna parada ao seu lado, parecendo indecisa. Anna a encarou, sentindo que Jennifer esperava uma resposta sobre o que ela faria a seguir, se os deixaria ali ou seguiria a viagem com eles. Começou a falar, com um semblante piedoso.
— Garota, você até que me pareceu bem valente, mas acho que não vai ser suficiente diante de mais gárgulas…
— Você vai conosco?? — Assemelhava-se mais com um pedido desesperado de Jennifer do que com uma pergunta.
— E eu tenho opção? Não vou conseguir colocar minha cabeça no travesseiro a noite sabendo que provavelmente vocês estarão… Sei lá… Mortos.
— Ou morando no Canadá. — Jennifer completou, sorrindo tentando quebrar a tensão que pairava no ar.
Quando o trem passou, todos esperaram os vagões do final do comboio e subiram um a um, ajudados pelos que já haviam conseguido subir. Os vagões da frente levavam contêineres metálicos, enquanto que os do fundo eram de madeira.
O vagão onde todos já se acomodavam estava carregado de sacas de açúcar, formando pilhas de aproximadamente um metro de altura. Todos subiram nas pilhas e se recostaram nas paredes. Eles pareciam assustados e cansados. Anna procurou a maior fresta e observou o céu por alguns instantes, repetia o gesto de tempos em tempos. Sempre que voltava, sentava ao lado de Jennifer, que estava próximo a parede do fundo, segurando as pernas, com os joelhos junto ao rosto.
— Tudo limpo por enquanto? — Jennifer desenterrou o rosto dos joelhos e perguntou, virando-se para ela.
— Por enquanto… — Anna respondeu inquieta. Abriu o casaco, certificou-se que suas adagas estavam lá.
— Você machucou a testa.
— O que? — Anna virou-se na direção dela.
— Tem um corte aí no seu supercílio, não tem? — Falou passando a mão de leve em cima do corte.
Anna levou a mão ao rosto, olhou a palma da sua mão, que se manchou de sangue.
— Não foi nada. — Respondeu sisudamente.
— Os híbridos também se curam mais rápido, como os Titans?
— Alguns…
— É o seu caso?
— Sim. — Respondeu em seco.
— Muito mais rápido que os humanos? — Jennifer insistia no assunto.
— Mais ou menos… Mais rápidos que os humanos, mas não tão rápidos quanto um Titan.
Anna percebeu que era seria inevitável fugir da curiosidade de Jennifer, espojou-se, procurando uma posição mais confortável no patamar de sacas. Alguns minutos de silêncio se instauraram, Jennifer voltou a falar, olhando pensativa para frente agora.
— Tinha um híbrido na minha turma na escola, acho que nos primeiros anos… Não lembro. Enfim, acho que foi o único que tive contato direto, vocês não gostam muito de se misturar, né? — Falava enquanto mexia em suas pulseirinhas multicoloridas.
— Não sei… É o mais conveniente, eu acho. — Anna titubeou na resposta.
— Nunca fui muito com a cara dos Titans, mas sempre achei interessantes os híbridos. Vocês podem andar nos dois lados, tem características de ambos e…
— Em nenhum dos lados. — Anna a interrompeu rispidamente.
— Como assim?
— Vivemos a margem da sociedade, seja a dos humanos ou a dos Titans, nenhum deles nos veem como seu semelhante, e então acabamos não sendo nem uma coisa nem outra.
— É… Eu nunca havia enxergado por esse lado…
Novamente ficaram em silêncio, pensativas.
— Qual o plano? — Virou-se para Anna.
— Dos híbridos?
— Não, para hoje. Mas os híbridos têm algum plano de dominação mundial? — Jennifer perguntou com curiosidade.
— Claro que não. Sobre hoje, nós vamos seguir até o final da linha, esperando pelas gárgulas.
— Esperar?
— Tem algum plano melhor?
Jennifer balançou a cabeça devagar, negativamente. Anna levantou e foi olhar pela greta.
— Oh não… Lá vem outro… — Anna murmurou. Jennifer levantou-se rapidamente e foi olhar pela abertura também. Ainda estava distante, mas vinha na direção deles num voo alto.
— Não tenho mais balas, mas ainda tenho meu punhal, e agora já sei onde enfiá-los. Estou pronta.
Anna não respondeu, continuava olhando fixamente para o céu. Todos perceberam o que estava acontecendo e levantaram-se também.
— Eu vou tentar levá-lo para outro lugar, para que não ataquem vocês. Vou chamar a atenção dela de cima de algum vagão mais à frente, vocês permaneçam aqui, sem maiores movimentações. — Anna explicava, didaticamente.
— Eu também vou! — Jennifer olhou fixamente para Anna, com tanta certeza no tom da voz que ela não teria como impedi-la.
— Tá bom, mas apenas me ajude a despistá-lo, entendeu?
Saindo do vagão havia uma escada de marinheiro, que levava ao topo do comboio. Subiram e pularam ao vagão da frente, esforçando-se para manter o equilíbrio. Não havia muito vento, mas o sacolejo do trem era traiçoeiro.
Então o temido ser alado deu seu último voo rasante, chegando até elas.
— Atrás de mim, Jennifer! Vá para trás! — Vociferou.
Anna já empunhava suas duas adagas em posição de ataque, sem tirar os olhos do seu alvo e com determinação inabalável, movendo-se devagar de um lado para outro, como um boxeador procurando o momento certo de encaixar seu melhor golpe.
Ela fez o primeiro ataque, pela esquerda, mas a criatura se desvencilhou, deixando o golpe passar no vazio, aproveitando o movimento para segurar seu braço esquerdo.
Tentou um golpe com a direita, mas ela também a segurou pelo punho, ainda no alto. Ela estava agora sem defesas, com as duas mãos presas. A gárgula a encarou, com um semblante raivoso, e passou a forçá-la para baixo e para trás, Anna resistiu o quanto pode, forçando na direção contrária e lutando para se manter de pé, mas lentamente abaixou-se, curvando os joelhos, até cair finalmente de costas. Jennifer se aproximava desesperada, ensaiava alguma reação, mas recuava.
A gárgula bateu seguidamente a mão esquerda dela contra o teto do vagão, o dorso da sua mão já sangrava com o atrito da madeira, a fazendo por fim soltar a adaga. Jennifer decidiu que era hora de entrar em ação e correu na direção deles, com um movimento rápido a criatura soltou um dos punhos de Anna e derrubou Jennifer também, atingindo-a na altura do peito com um golpe forte.
Anna aproveitou seu braço solto e a momentânea distração da gárgula para erguer-se de pé novamente, passando a adaga que restou da mão direita para a esquerda, e a golpeou no braço forçando a criatura a soltar sua outra mão, enquanto Jennifer ainda atordoada e caída no chão, arrastava-se de costas. A criatura perseguiu lentamente Anna, que dava passos para trás no mesmo ritmo que ela avançava. Anna desesperadamente tentou desferir golpes na altura do pescoço, mas a lâmina passou apenas próxima à sua garganta.
Num sobressalto a criatura a segurou pelo pescoço com ambas as mãos. Certo do domínio de sua presa, a gárgula encarou Anna apertando cada vez mais, quando se ouviu o barulho de uma grande asa de morcego abrindo-se. A besta armara suas asas expondo extremidades pontiagudas prontas para o ataque. Anna continuava presa, com dificuldade para respirar, debatendo-se e tentando desprender as mãos dela do seu pescoço. Foi tomada pelo pânico quando percebeu o que estaria prestes a acontecer, ninguém é páreo para um ataque tão letal.
Num golpe desajeitado, Jennifer com sua adaga em punho a fincou no pescoço da gárgula, o máximo que conseguiu. Instantaneamente emitindo uivos, a criatura soltou Anna. Arrancou a adaga de seu pescoço e cravou em Jennifer abaixo do ombro direito, fazendo-a novamente cair de costas. Após seu último reflexo, ela desabou ao chão, com as mãos e dedos em forma de garras envolvendo o próprio pescoço, sangrando e debatendo-se, até finalmente não mais se mover.
Anna olhava o ser sucumbindo no chão, pasmada. Após certificar-se que já não era mais uma ameaça, correu para socorrer Jennifer, ainda caída, que se apoiava no chão com os cotovelos. Com os olhos arregalados fitou Anna, que correspondeu o olhar, assentindo que o perigo havia terminado. Jennifer sentou-se, e arrancou a faca do seu ombro com dificuldade e um berro de dor, franzindo o cenho.
— Você está bem?! — Anna abaixou-se ao seu lado e colocou a mão em cima do ferimento, uma abertura na jaqueta, que começava a tingir-se de vermelho.
— Sei lá! Mas essa coisa está morta não está? Chuta para ter certeza!
— Tá morto, fica tranquila. — Anna voltou à gárgula e a chutou para fora do vagão, fazendo com que o corpo rolasse pela terra que ficava para trás, levantando poeira.
Anna ajudou Jennifer a levantar-se e a conduziu até a extremidade do vagão.
— Anda, vamos voltar para o vagão, eles devem estar apavorados.
— Eles apavorados?? Eu estou apavorada! E furada! — Jennifer guardou seu punhal de volta em sua bota, emparelhou-se com Anna na beira do vagão.
— Uma pessoa apavorada não consegue matar uma gárgula. — Anna falou olhando para Jennifer. — Vamos, pule, vou logo atrás. — Anna passou seu braço na cintura de Jennifer e a ajudou a passar para o outro vagão, num pulo duplo com facilidade.
Voltaram de encontro aos outros, que estavam de pé reunidos próximos a porta do vagão. Jennifer entrou eufórica, mas com semblante de dor.
— Essa já era, pessoal! — Comemorava.
— O que aconteceu com você? E esse sangue? — Becca perguntou.
— Mataram aquele bicho do inferno? — Bob perguntou, olhando para Anna.
Anna passou por eles e já se sentava lentamente num monte de sacas, quando percebeu que a pergunta era direcionada a ela ergueu a cabeça e apontou para Jennifer.
— Eu não, a heroína aqui é ela. Jennifer matou aquela coisa sozinha. — Falou orgulhosa.
A atenção então se voltou a Jennifer e todos entusiasmados a questionavam como havia matado a gárgula.
— Na verdade Anna fez o serviço pesado, eu só cravei uma faca no pescoço daquela coisa, ela ainda teve tempo de se vingar na mesma moeda, aquele bicho desgraçado… — Jennifer contava, por fim apontando para o ferimento abaixo do ombro, onde já havia um círculo escarlate. Becca aproximou-se e olhou de perto o local onde Jennifer agora pressionava sua mão esquerda.
— Você levou uma facada aí? — Perguntou assustada.
— Foi o presentinho de despedida dela… — Jennifer respondeu com ironia. — Porra, isso tá doendo muito.
— Que horror! Quer que eu dê uma olhada nisso?
— Você tem um kit de primeiros socorros aí no bolso? – Jennifer deu um meio sorriso. — Vamos focar nessas bestas chatas, talvez ainda falte uma, vamos ficar de olho, é questão de tempo para aquela coisa infernal rondar nosso vagão, não é?
Jennifer falou olhando para Anna, como um questionamento. Anna apenas assentiu com a cabeça.
Voltaram então para a rotina de levantar e ir olhar os ares, de tempos em tempos. Já passava das cinco da tarde e a apreensão aumentava à medida que o tempo passava. Novamente Jennifer sentada ao lado de Anna, conversava e revezavam a vigília entre as frestas e a porta.
— Está muito ruim? — Anna olhou para o ombro de Jennifer.
— Essa porcaria está latejando. Mas pressinto novas aventuras em breve, então estou tentando não dar muita atenção para isso agora. É como dizem, o que os olhos não veem, o coração não sente. Estou evitando olhar… Não olhe também.
— Mas se você estiver perdendo sangue com esse corte, pode te deixar em apuros em breve, muito em breve. — Anna parecia preocupada, percebeu que Jennifer estava assustada e um pouco mais pálida que o normal.
— Uma coisa de cada vez. Vamos colocar nosso terceiro amiguinho para dormir, depois eu vejo isso. — Voltaram a ficar em silêncio por alguns segundos.
— Ok, mas depois vou dar uma olhada nessa ferida.
— Se fosse em você, já estaria cicatrizando? — Jennifer perguntou, instigada por sua curiosidade natural.
— Não. — Respondeu rapidamente, mas depois continuou:  — Também não é assim milagroso. — Anna procurava as palavras olhando para o chão. Ela não estava acostumada a ser questionada sobre quem era, isso era algo que sempre a deixava desconfortável. Mas estava achando estranho não se sentir desta forma com as perguntas de Jennifer, no fundo sentia algo até confortável em conversar com aquela garota tão cheia de energia e perguntas.
Anna morava sozinha naquele casarão já há algum tempo, desde que seu pai havia morrido. Seu irmão, Andrew, que era alguns anos mais novo, havia saído de casa durante a guerra. Simplesmente colocou uma mochila nas costas, disse que desbravaria o mundo e nunca mais voltou.
— Digamos que as defesas do meu organismo sejam mais rápidas e eficazes que as suas. Eu, a essa altura, já teria parado de sangrar, e provavelmente eu não teria infecção.
— Mas eu terei infecção??
— Sim. Quer dizer… Não! Talvez… Mas não estou dizendo que você terá uma infecção agora, pelo menos espero que não. Não tenha, ok? Daria muito trabalho para nós.
— Ok…Vou fazer o possível… E seus pais, quem é Titan, e quem é humano?
— Garota, acho que é sua vez de olhar lá fora. — Anna encerrou a conversa, abaixando sua cortina e dando como encerrado o espetáculo.
Anna perdeu primeiro sua mãe, uma bela Titan de cabelos longos e negros, num acidente de carro há quase vinte anos. Seu pai, humano, morreu num ataque cardíaco fulminante, tempos depois. Anna havia passado toda a guerra sozinha, se protegendo como podia no seu casarão a beira do oceano. Havia perdido a conta de quantos invasores colocara para correr ou eliminado. Aparentava trinta anos, mas por conta de parte da sua genética Titan, sua idade real era maior.
— É… Minha vez. — Jennifer levantou-se, apoiando-se no ombro de Anna, e foi verificar os céus. Semicerrou os olhos e teve então certeza que lá vinha a terceira e última gárgula. Virou-se rapidamente na direção de Anna.
— Ferrou. — Sussurrou, com seu linguajar despojado. Anna entendeu a mensagem e prontamente levantou-se. Os outros perceberam e levantaram também.
— Quer que eu vá com você, Jenny? — Perguntou Becca.
— Anna não vai deixar. Não é, Anna? — Jennifer olhou para Anna sacudindo de forma rápida e discreta a cabeça negativamente, franzindo a testa, como se pedindo para Anna corroborar com sua afirmação e não deixá-la acompanhar.
— É muito perigoso, Becca, fique aqui cuidando da porta. — Anna confirmou.
Jennifer se aproximou de Anna, falou de forma pontual, fazendo o planejamento da próxima aventura.
— O segundo vagão depois desse, está com menos madeira nas paredes, ou seja, tem frestas maiores.
— Bem observado. E?
— Acompanhe meu raciocínio: é perigoso para nós lutarmos em cima do vagão, acho que deu para perceber, né? Quase despenquei de lá umas cinco vezes… Acho mais seguro enfrentarmos dentro, por isso a dois vagões daqui seria o lugar ideal, temos maior visão do que acontece do lado de fora, poderíamos esperá-lo lá dentro.
Anna parecia hesitar. Jennifer continuou:
— Vamos atraí-lo para aquele vagão e esperar lá dentro, com facas em punho… E, bom, o final do filme você já sabe como é. — Insistia.
— Ok, mas novamente você fica na minha retaguarda, me deixe atacá-lo, entendido?
— Totalmente. — Jennifer fez um sinal com o braço apontando a porta, gentilmente. — Primeiro os mais velhos. —  Sorriu.
Subiram no vagão e olharam ao mesmo tempo para a gárgula no céu, que veio rapidamente ao seu encontro assim que as avistou.
— Corra para o vagão que você falou! — Ordenou Anna. Jennifer não entendeu a ordem, porque Anna continuava parada olhando para o alto, mas mesmo assim obedeceu e correu em direção ao segundo vagão à frente.
Jennifer disparou sem olhar para trás, entrou no vagão e foi logo para a parede dos fundos olhar pela fresta tentando enxergar se Anna estava vindo também. Mas não a enxergou. Percebeu que Anna havia ficado lá em cima e decidido lutar sozinha.
Depois de alguns segundos ela enfim viu Anna correndo desesperadamente, despontando em cima do seu vagão.
— Anna! Corra! Venha para dentro!
Mas antes que finalizasse a frase uma imagem aterrorizante se seguiu: Anna desistiu de pular, virou-se para trás com a adaga em punho, Jennifer viu a gárgula num voo rasante, como um falcão que mergulha para pegar sua presa em solo, agarrar Anna pelos ombros, erguendo-a bruscamente e então carregando-a.
A garota ficou paralisada em pé no meio do vagão, imaginando que o pior havia acontecido. Sustentava os olhos arregalados, sem acreditar na cena que havia acabado de assistir.
— Meu… Deus… Ferrou tudo. — Falava para si, incrédula.
Um estrondo no teto do vagão a tirou daquele estado anérgico. Olhou para cima e então correu para a porta, subiu rapidamente a escada, parou nos últimos degraus e deu uma boa olhada para todos os lados, olhou para cima, mas não viu nada nem ninguém, continuava sem saber o que havia acontecido, eles simplesmente haviam sumido.
Tomou um susto quando Anna apareceu de súbito na lateral da escada, agarrando-se ao corrimão da mesma, quase sem fôlego.
— Santo Cristo, mulher! Você está viva?! — Jennifer explodiu, num misto de surpresa e alegria.
— O que você acha? — Anna respondeu, erguendo a mão num gesto de impaciência.
Jennifer apenas sorriu.
— Podemos entrar? — Anna continuou. Seu rosto tinha arranhões na testa e abaixo do olho.
Jennifer entrou no vagão, assim que Anna entrou a abraçou aliviada. Ela era uma mulher alta e de postura ereta, e mesmo Jennifer sendo menor, encaixaram-se. A exultante humana passou seus braços por baixo dos braços dela e a segurou firme com as mãos espalmadas em suas costas. Anna parecia não entender direito a situação, mas acabou erguendo suas mãos e retribuindo o abraço, meio confusa.
Jennifer a soltou, lhe fitou ainda assustada, não acreditando que tivesse se safado daquela enrascada. Com uma mão tateou os ombros dela, havia no casaco as marcas das entradas das garras da gárgula, e então esbravejou:
— Puta que o pariu, você quase me matou de susto! Por alguns instantes eu achei que você tinha morrido!
Anna ainda levou alguns segundos para se recompor, mudou totalmente suas feições, passando de séria para uma mais descontraída.
— Bom, desculpe, não foi minha intenção preocupá-la, mas eu estava ocupada tentando matar aquela coisa, não deu tempo de avisar que eu estava viva.
— E conseguiu matar?
— Estou aqui, não estou? Ela já era.
— Eu vi quando ela prendeu você com as garras e te carregou! Eu pensei ‘pronto, levou embora e vai fazer um banquete com ela!’ Como você conseguiu?
— Fiz o mesmo que você, cravei minha lâmina no pescoço dela.
— No ar??
— Sim, no ar. Eu sabia que provavelmente não desceria dali viva se não fizesse algo radical, então… Tive que arriscar.
— E o que aconteceu?
— Caímos.
— Eu escutei o barulho… Céus, vocês lutaram no ar? Eu vou contar esse dia para meus netos e eles não vão acreditar em uma só palavra…
— E então… Vamos voltar para o vagão?
Retornaram rapidamente para o vagão onde se encontrava o restante do pessoal, Jennifer entrou na frente, comemorando.
— Acabou pessoal! A última gárgula virou lixo abandonado ao longo da via!
— Também matou esse, Jenny? — Perguntou Bob. Todos fizeram gestos positivos e pronunciaram palavras de alívio. Sam e Lindsay, as irmãs, se abraçaram.
— Não, não, foi nossa amiga aqui… E numa cena cinematográfica! — Jennifer falava efusivamente, colocando o braço em volta de Anna, como camaradas após um jogo vitorioso.
— Conta aí, Jenny! — Becca incitava ainda mais a animação de Jennifer.
Anna então caminhou para um canto do vagão e sentou-se, exausta.
Jennifer continuava:
— Nossa, vocês tinham que ver, ela lutou com aquele bicho no ar! No ar! Eu não vi, mas queria ter visto.
Contou toda a ação que acabara de presenciar, com seus palavrões e cheia de animação, todos ouviam atenciosos.
— Sério Anna?? — Bob virou-se para ela, questionando.
Anna apenas assentiu com a cabeça.
— Seríssimo! — Respondeu Jennifer, continuando a história.
— Então acabou? Estamos livres? — Perguntou Becca.
— Estamos! Não estamos, parceira? — Jennifer virou-se para Anna, pedindo a confirmação.
— Acredito que sim… Vamos planejar nosso retorno, estamos bem longe de casa. — Anna respondeu, sem animação.
E a excitação de Jennifer deu lugar a um ar de preocupação, ela caminhou na direção de Anna e ajoelhou-se ao seu lado, perguntando se poderia dar uma olhada nos seus ombros. Anna tratou logo de tranquilizá-la.
— Vou ficar bem, não se preocupe. Lembra que eu falei como seria se seu ferimento fosse a mim? São apenas alguns pequenos furos, nem devem estar mais sangrando.
— Tomara… E não terá a infecção que eu já devo estar desenvolvendo neste instante, pelo nível da dor que estou sentindo vai ser uma merda bem grande.
Bob, Becca e Peter também se aproximaram das duas, e logo questionaram o que fariam a seguir.
— Eu… Não sei. Vamos pular do trem? — Perguntou Jennifer, receosa.
— Vamos, mas não assim no meio do nada. Vamos esperar a próxima cidade ou vilarejo. Não vamos achar carona, e a essa hora não deve ter comboios voltando, penso ser mais seguro procurarmos algum lugar para passarmos a noite, voltamos no primeiro trem que for na direção de Bridgeport. — Anna falou olhando para o chão a sua frente, pensativa.
Todos pareciam agora pensar em cada passo que dariam a seguir, como se estivessem mentalizando a continuação da aventura proposta por Anna.
— É isso aí, pessoal, Anna manda. Vamos ficar na porta até avistar algum vilarejo e então saltamos. — Jennifer ratificou os planos dela.
— Acho que precisaremos de água… — Falou Becca.
— Quando chegarmos seja onde for, procuraremos água, se tiver algum comércio no local, compramos algumas coisas para comer também.
Jennifer caminhou até a porta com a mão sobre o ferimento, passou a observar atentamente a paisagem à sua frente.
A esta altura tanto Anna quanto Jennifer estavam num estado de curiosidade mútua. Jennifer admirava sua coragem e bravura, e o zelo altruísta que tinha por ela e por seus amigos. Anna era uma desconhecida que teve sua casa invadida, e estava ali arriscando sua vida por eles, os defendendo, inclusive havia se ferido, mas permanecia ali como uma fortaleza.
Mesmo numa circunstância emergencial como aquela, Jennifer estava ávida por saber mais sobre Anna. Havia despertado um interesse do tamanho daquele trem, ou maior!
Da mesma forma, também havia a curiosidade de Anna. Sentada no chão do vagão, pensando no próximo passo, mas não conseguindo evitar olhar para Jennifer de quando em quando, como se entendesse melhor quem era aquela garota apenas a observando. Como havia aprendido a ser tão independente e destemida? Qual a história da sua vida?
Todos sentaram próximos a Anna, como se a proximidade recompensasse os esforços dela e a agradecesse por não ter os abandonado ainda à beira da linha férrea, ou ainda que não tivesse simplesmente os expulsado de sua casa, o que teria sido plausível.
Algum tempo depois Jennifer surgiu correndo em saltos para próximo do grupo, avisando que havia avistado o que parecia ser casas e uma estação de trem. Levantaram-se e tomaram posição. Quando o trem se aproximou da vila pularam um a um, num descampado com vegetação rasteira.
Caminharam até uma antiga estação ferroviária de paredes amarelas, parcialmente destruída, mas ainda com alguns guichês de pé. A luz do dia diminuía, a temperatura começava a cair e o céu agora rosado, com algumas nuvens, passava a ter a iluminação especial da lua por trás das massas cinzas arredondadas. Tentavam adivinhar em qual cidade ou vila estavam.
A estação tinha uma plataforma alta, aproximadamente um metro do chão. Anna avistou um pequeno armazém do outro lado, e pediu que alguém a acompanhasse. Jennifer prontamente se voluntariou, mas Anna a vetou.
— Você? Melhor não… — Anna respondeu, franzindo a testa como um ‘sinto muito’.
— Você chamaria a atenção, com essa jaqueta suja de sangue… — Continuou.
Becca prontificou-se então.
— Eu vou com você. Esperem aqui embaixo, do lado da plataforma.
Sentaram-se no chão, recostados na parede da estação. Anna e Becca voltaram em poucos minutos, trazendo água e alguns suprimentos.
— E agora? Para qual lado? — Jennifer questionou.
Anna pareceu não ouvir, olhava para os lados, como se procurando algo.
— Estamos no meio do nada. Vamos naquela direção, estão vendo? Tem algumas casas e parecem abandonadas, se acharmos alguma com teto e paredes suficientes podemos passar a noite.
Anna pediu que se levantassem e começaram a caminhada na direção de um conjunto de casas cinzas e ocres, parcialmente destruídas. Ficavam a uns quinhentos metros da estrada de ferro.
— Se tudo der certo, amanhã à tarde já estaremos em nossas casinhas… — Comentou Becca.
— Aprecio seu otimismo, Becca. — Disse Jennifer.
— Perguntamos no armazém quando passava o próximo trem em direção ao sul, e a moça respondeu que entre oito e nove da manhã passa um trem de carga. É nossa carona de volta! — Animou-se Becca.
Caminhavam com passos rápidos, na pressa de encontrar um ponto de parada. Almejavam um pouco de sossego, dentro do possível numa casa abandonada, mesmo que longe de seus lares.
De vez em quando Jennifer levava a mão ao ombro ferido, parecia cada vez mais doer e incomodá-la.
Chegaram até as casas, a rua de chão batido parecia uma rua fantasma, com casas inabitadas e o mato crescendo. As primeiras casas estavam totalmente destruídas, até que encontraram uma casa com pelo menos dois cômodos intactos e ainda coberta pelo telhado.
Adentraram devagar, estudando cada detalhe da habitação. O melhor cômodo de pé parecia ter sido um dia a sala de estar da casa. O chão de madeira não muito empoeirado e com algumas roupas velhas largadas denunciava que outros hóspedes temporários haviam passado por ali não há muito tempo.
A porta do outro lado da sala estava fechada com tábuas pregadas, bem como as duas janelas da parede contrária a lareira. — Que bom, proteção para o frio! — Pensou Jennifer.
O interior da casa tinha as paredes brancas e sujas, com algumas manchas de mãos. Por um momento Jennifer sentiu-se intrigada ao pensar que aquela já havia sido a casa de alguém, de alguma família. Questionava se alguém havia morrido ali durante a guerra, ou se tiveram tempo de fugir do bombardeio.
— E então, vamos acender essa lareira? — Perguntou Bob.
— Acho que pode chamar atenção desnecessária… — Jennifer receou.
— Acendemos ou não? — Bob voltou a perguntar.
— Vai esfriar à noite, podemos acender a lareira e ficamos de vigília para nossa segurança. E vai esfriar bastante. — Respondeu Anna.
— Ok, vamos lá fora procurar madeira que possa ser usada como lenha! — Bob chamou para o acompanharem.
Os que ficaram dentro da casa começaram então a preparar sanduíches com pães e salame que haviam comprado. Distribuíram também a água, uma garrafa para cada par.
Um a um, voltavam para a casa, trazendo o que haviam encontrado para manter o fogo durante a noite, gravetos, pedaços de madeira de escombros. Uma pilha bagunçada foi se formando ao lado da lareira. Jennifer voltou esfuziante trazendo um pedaço de tronco que havia encontrado.
— Esse vai queimar a noite toda! — Vibrava. — Bob, duvido achar um tronco melhor que este!
— O que são essas larvas saindo da madeira? — Bob olhou com asco.
— Argh! — Jennifer atirou o tronco para fora da casa.
Enquanto isso Anna pegou alguns gravetos e punha-se a esculpi-los, pontudos, como pequenas lanças, para que cada um tivesse algum tipo de defesa durante a noite. Depois saiu a procura de algo que pudesse ser usado como ignição para o fogo, alguma palha talvez.
***
Naqueles tempos a segurança era um dos maiores problemas pós-guerra. Com a polícia enfraquecida, a população parou de confiar na segurança pública, abrindo espaço para grupos de segurança privada e milícias. O maior temor de todos não era que assaltantes ou outros nômades invadissem suas casas durante a noite, tinham medo que milícias de Titans os abordassem com violência, já que vagavam em grupos, seguindo suas próprias leis, e não hesitavam em bater ou atirar em quem cruzasse o caminho deles. Se vissem uma híbrida ajudando um grupo de humanos, não veriam com bons olhos.
***
Já passava das oito da noite quando finalmente o fogo tomou vigor na pequena lareira. O clarão das chamas iluminava os semblantes de todos, destacando o vermelho dos rostos dos que haviam carregado a lenha. Pareciam cansados, mas animados com o surgimento de grandes chamas. Bob e Jennifer, abaixados, ainda se aproximavam e colocavam mais alguns gravetos estrategicamente, como se estivessem num jogo de pega varetas.
Enquanto isso Anna se agachou ao lado dos outros, conversou ponderosamente, gesticulando com calma, ensinava a usar as lanças improvisadas, passando orientações sobre como se defender caso algo acontecesse à noite.
Todos já haviam se alimentado ou ainda finalizavam seus pães, sentados junto à parede em frente à lareira. Jennifer continuava entretida com o fogo, agachada, colocando gravetos. Até que sua visão ficou turva, como se uma grande lanterna a cegasse. Sentiu as pernas fraquejando, desequilibrou-se, deu alguns passos sôfregos para trás e acabou caindo de costas.
Anna rapidamente levantou-se e foi acudi-la, ajoelhando-se ao seu lado. Viu que estava suando e parecia desnorteada. Abriu sua jaqueta jeans e confirmou o que suspeitara, a camisa por baixo estava com o lado direito completamente rubro de sangue, um rastro vermelho que sujava inclusive o cós de sua calça.
— Garota, você tem ideia do quanto já perdeu de sangue?! — Questionou preocupada.
— Isso foi uma pergunta retórica ou eu deveria saber a resposta? — Brincou Jennifer, mesmo quase desfalecendo e ardendo em febre.
Anna a arrastou devagar até a parede. Despiu-se de seu casaco negro, dobrou e colocou embaixo da cabeça de Jennifer, como travesseiro.
— O que aconteceu com ela? — Aproximou-se Becca, assombrada.
— Perdeu um pouco de sangue, está com febre, deve ter infeccionado… — Respondeu Anna, ainda verificando a camisa encharcada dela.
— Ah… A tal infecção… — Jennifer sorriu novamente, olhando para Anna, que não retribuiu o riso.
— Ela vai ficar bem, não vai?
— Eu vou tentar melhorar um pouco isso… — Desconversou.
— Becca, relaxa, tá tudo bem, foi só uma tontura, não estou grávida. Amanhã à noite estarei jantando queijo quente na sua casa.
Anna buscou uma garrafa de água e a ajudou a tomar um gole. Ergueu um pouco a cabeça de Jennifer, pegou algo nos bolsos do seu casaco e voltou a deitá-la no embrulho macio.
— Alguém pode arranjar um lenço, um pedaço de pano, ou algo do tipo?
Depois de livrar-se da camisa de flanela cinza, Bob respondeu: — Aqui, aqui. — Entregando a Anna sua regata de algodão branca, que usava por baixo.
— Talvez eu não a devolva, tudo bem? — Anna perguntou.
— Fique à vontade. — Respondeu, apenas preocupado em ajudar.
Anna pegou a adaga de dentro da bota de Jennifer e cortou a camisa em três pedaços. Dobrou dois deles e ficou com um sobre sua perna.
— Posso abrir sua blusa? — Anna perguntou de forma gentil a Jennifer.
— Não vai nem oferecer uma bebida antes? — Jennifer respondeu baixinho.
Anna sorriu e então ergueu uma pequena garrafa de uísque, completando.
— Infelizmente não é para você beber. Prometo que lhe pago uma bebida qualquer dia desses. Essa aqui é para limpar seu ferimento.
Anna abriu com cuidado sua blusa, expondo totalmente o lado direito, deu uma boa olhada no estrago, em seguida colocou a alça do seu sutiã para o lado.
Antes de despejar o conteúdo da garrafa fitou Jennifer, que não mais olhava seu próprio ferimento e sim retribuía o olhar.
— Vai doer. — Anna a alertou.
— Tudo bem, manda ver, confio em você. — Jennifer respondeu, fazendo um semblante de valentia.
Anna hesitou de novo, ergueu um pouco a mão direita, que estava livre.
— Tome, pode apertar minha mão se quiser.
Jennifer aceitou a oferta segurando sua mão. Anna derramou aos poucos o uísque sobre o ferimento, o sangue diluído em álcool escorria para os lados, empossando sobre seu corpo. Jennifer apertou sua mão num longo piscar, mordendo o lábio inferior, com uma expressão severa de dor.
— Que mer… — Sussurrou.
Ao abrir os olhos se deparou com Anna, que a olhava com apreensão. Neste momento Jennifer pode ver de perto seus arranhões no rosto, pequenos cortes e arranhões na testa do lado esquerdo, e um corte acima da maçã do rosto, próximo ao olho esquerdo. Notou o cabelo solto querendo pender para frente das orelhas, seus olhos que pareciam duas porções de um mar azul. Pela primeira vez podia ver todas as feições de Anna bem de perto.
— Tudo bem? — Perguntou Anna.
— Acabou?
— Vou limpar agora. Consegue devolver minha mão? É que vou precisar dela.
Anna passava um dos retalhos de pano da camisa de Bob ao redor do ferimento, e depois mais suavemente, por cima do corte. Desceu e foi limpando abaixo, próximo a cintura. Jennifer acompanhava os movimentos com um olhar baixo.
— Posso? — Perguntou Anna, olhando para a altura do peito.
— Vá em frente, já me conformei em não ganhar um drinque seu essa noite. — Respondeu Jennifer.
E então limpou o sangue por baixo do seu sutiã, com delicadeza.
— Onde você arranjou essa garrafa? — Jennifer questionou.
— Peguei emprestado no armazém do lado da estação, enquanto Becca entretia a vendedora.
— Emprestado?
— Pronto, vou improvisar um curativo, ok? — concluiu Anna, encerrando o assunto.
Apenas assentiu com a cabeça. Anna dobrou outro pedaço do pano e colocou em cima da ferida. Pegou um pequeno rolo de fita adesiva, tirava pedaços e colava por cima da bandagem.
— Também pegou essa fita emprestada? — Perguntou jocosamente Jennifer.
— Ahan. Mas um dia eu volto lá e devolvo tudo.
— Faço questão de ir com você e ver a cara da atendente. — Jennifer falou quase sussurrando, sonolenta.
Quando terminou o curativo, fechou sua blusa e a jaqueta. Olhou para Jennifer e viu que ela estava de olhos fechados.
— Jennifer? Jennifer, não durma, não ainda.
Ela abriu os olhos lentamente.
— Tente se manter acordada, você consegue? Mais tarde deixo você dormir, prometo. Você já comeu?
Jennifer fez sinal negativo com a cabeça. Anna buscou comida, a ergueu um pouco e ajudou a comer.
— Está com frio?
— Uhum. Mas quem não está, não é?
— Sim… Mas você está sentindo mais frio por causa da febre. Só não durma agora.
— Ordens médicas?
— Ordens médicas expressas.
— E seus ferimentos? Eu tive apenas um cortezinho no ombro. Você precisa cuidar dos seus também.
— Eu vou ficar bem, não foi nada demais.
— Posso ver?
Anna apenas olhou para Jennifer, levantou-se e dirigiu a palavra para todos:
— Pessoal, a noite vai ser bem fria, tentem permanecer próximos à lareira, e não podemos deixar o fogo apagar.
— Vamos manter vigília? — Interrompeu Bob.
— Sim, eu me ofereço para ficar de vigília inicialmente, mas podemos revezar em duplas. Todos de acordo?
Todos concordaram e logo formaram as duplas. Iniciaram uma discussão para formar a ordem da vigilância.
— Se não se importarem, eu gostaria de fazer o primeiro turno, porque quero ficar de olho nela, monitorando a febre. — Anna apontou para Jennifer com a cabeça. — Poderia ficar até meia-noite ou uma da manhã.
— Depois vocês podem revezar de duas em duas horas. — Continuou.
— E quem estiver acordado também cuida do fogo. Tem bastante lenha ainda, mas se precisar, procuraremos mais. — Completou Becca.
— Becca tem razão, sem esse fogo vamos congelar. Fiquem próximos uns aos outros para se aquecer. Se preferirem durmam em duplas, para aproveitar o calor do corpo. — Anna sugeriu.
Anna escutou Jennifer falando algo, mas não entendeu. Aproximou-se dela, e abaixou-se.
— O que você falou?
— Também quero fazer turno.
— Mas você não está em condições de ficar de vigília… — Anna falou de forma gentil.
— Posso fazer o último turno, já estarei melhor.
— Tá bom, vou pensar no assunto, ok? Quem sabe nós duas fazemos o último período então. — Respondeu, já sentando ao seu lado.
A temperatura caia cada vez mais, todos conversaram mais um pouco sobre a ordem dos turnos, foram procurando as melhores posições para dormir, apoiando-se uns nos outros. Anna colocou seu casaco sobre Jennifer, cobrindo seus braços, a viu lutando para manter os olhos abertos. Virou-se em sua direção e colocou uma mecha do cabelo dela que estava sobre sua testa, para trás da orelha.
— Como se sente?
— Desejando minha cama com todas as forças do universo, talvez ela se materialize no meio dessa sala. — Jennifer tremia e batia seus dentes, com frio.
Anna levantou, ficando de joelhos.
— Chegue um pouco para frente. — Pediu.
Jennifer desencostou da parede devagar, arrastou-se um pouco para frente. Anna entrou no espaço que se formou entre ela e a parede, sentando-se atrás dela, com as duas pernas ao redor do seu corpo.
— Pode recostar em mim agora. — Anna pegou as mãos de Jennifer por baixo do casaco, as cruzou sobre seu peito, e a puxou delicadamente para trás, para próximo de si. Deixou seus braços lá, por cima dela, para aquecê-la.
— Ficou mais quentinho assim? — Perguntou baixinho, próximo do ouvido de Jennifer. Ela apenas balançou a cabeça, concordando.
— Ok, pode dormir agora, vou ficar de olho em você. — Falou, colocando a mão em sua testa, checando a temperatura.
Todos dormiam. Anna permanecia alerta, olhando para a porta, para Jennifer, e às vezes para a janela na parede de trás. Sentia o corpo de Jennifer tendo tremores cada vez mais espaçados, acompanhou a temperatura dela caindo lentamente e a respiração mais forte, denunciando que caíra no sono.
Antes de adormecer, Jennifer se deu conta do conforto de estar deitada não mais numa parede dura e fria, mas no corpo aconchegante de Anna, seus pensamentos já se confundiam num estado de quase sono, sentia-se não só confortável e aquecida, mas também envolta, segura.
Anna podia ouvir apenas os ruídos da noite, que avançava lentamente. Alguns grilos e cigarras faziam a trilha sonora, às vezes o farfalhar das folhas das árvores quando alguma brisa soprava. Pela porta pouca claridade invadia o recinto, o céu estava encoberto. As chamas da lareira projetavam sombras dançantes nas paredes e refletiam nuances amareladas nas feições das pessoas adormecidas.
Um pouco antes de uma da manhã, Anna chamou Bob e Becca para assumirem o turno.
Ajeitou-se como pode, acomodou um pouco mais Jennifer em seu colo, a deitando de lado, passando um braço sobre ela.
— É meu turno? — Balbuciou Jennifer, sem abrir os olhos.
— Não, pode continuar dormindo. — Anna sussurrou.
Bob estava agora sentado ao lado de Becca, passando seu braço pelos ombros dela, tentando aquecê-la. Esfregavam os olhos numa tentativa de afastar o sono, enquanto bocejavam.
Mesmo não estando mais de vigília, Anna continuava acordada. Preocupava-se menos com a porta e possíveis invasores agora, permitia se demorar observando Jennifer dormir pacificamente, ela já não tremia mais. Passou os dedos nos cabelos um pouco bagunçados de Jennifer, preso num rabo de cavalo. Ela já parecia mais corada, realçada pelo fogo. Tinha um rosto jovial, ‘lembra uma menina dormindo depois de um dia de aventura’, concluiu Anna, que finalmente adormeceu.
Quando o sol começava a raiar, Anna despertou com um barulho no lado de fora. Sem alarde, permaneceu fitando a porta. Um barulho de passos se aproximava cada vez mais, ela continuava olhando fixamente para a porta.
Um vulto surgiu, de sobressalto sacou a adaga de Jennifer, que havia guardado ao seu lado. Mas a figura que surgiu na porta era Peter, carregando alguns gravetos. Suspirou com alívio, deixando novamente a faca no chão, tratando de dormir mais um pouco. Menos de uma hora depois já estavam todos acordados, ansiosos com a volta para casa.
Jennifer despertou já sem febre e com boa disposição.
— Você dormiu desse jeito, assim sentada? — Perguntou para Anna, se virando para trás.
Peter respondeu antes que Anna falasse algo.
— Sim, até eu acordá-la cedinho, quando fui buscar mais madeira, te assustei não foi?
— Um pouco… Devo dizer que você correu o risco de ver uma faca voando em sua direção… — Anna respondeu em tom descontraído.
— Já vamos para os trilhos? — Perguntou Becca.
— Daqui a pouco… — Anna consultou o relógio no pulso de Jennifer, passava um quarto de hora depois das sete. — Antes de qualquer coisa, vamos apagar essa lareira.
Seguiram logo depois para o local estipulado, esperaram em pé, estavam inquietos demais para sentar. O trem apareceu e já foi logo desacelerando para parar na estação, o que facilitou a subida. Anna subiu primeiro, num dos últimos vagões. Rompeu o cadeado da porta e ajudou todos a subirem. Havia sacas de tamanhos e conteúdos variados. Algumas bobinas de fio elétrico também formavam pilhas. Afastaram algumas sacas e se acomodaram para a viagem de quase quatro horas que viria a seguir.
A manhã começava clara, com poucas nuvens, e o sol morno trazia a sensação de que um dia mais tranquilo estava a caminho. Anna sentou-se quase ao centro do vagão, encostada em uma pilha baixa de sacas escuras. Jennifer checou um a um seus amigos se estavam todos bem, abaixou-se na frente de Lisa.
— O braço quebrado incomodou muito? Conseguiu dormir? — Perguntou solícita.
— Depois que Peter me aqueceu a dor foi diminuindo. Consegui dormir sim.
— Assim que chegarmos, vá ao hospital, ok?
Jennifer levantou e olhou ao redor, confirmando que todos estavam devidamente acomodados. Olhando para trás percebeu que na verdade faltava uma pessoa para verificar. Anna foi pega de surpresa quando seus olhares se cruzaram através do vagão, sem jeito desviou o olhar. Jennifer caminhou na sua direção, fez menção de sentar-se ao seu lado.
— Está ocupado? — Perguntou, sorridente.
— Você vai me pagar um drinque? — Respondeu Anna.
Jennifer sorriu e sentou, ficaram em silêncio por um instante. Inclinou a cabeça para frente e olhou para o lado com o cenho franzido para Anna.
— Você não me acordou para meu turno, não foi?
— Não. — Anna respondeu, com um leve risinho sarcástico.
Jennifer voltou a se recostar na pilha.
Anna continuou:
— Achei que você não se lembraria de nada hoje.
Jennifer mexia numa lasca de madeira que soltava-se do chão à sua frente, tentando arrancar. Novamente ficaram em silêncio.
— O que você fez… Por nós, por mim… Foi incrível.
— Fiz o que qualquer pessoa que se importa com os outros faria. — Anna respondeu depois de alguns segundos em silêncio.
— Como estão seus ombros?
— Sob controle.
— Achava que hoje em dia não existisse mais pessoas assim. — Jennifer parou de mexer no chão, se ajeitou, olhou para Anna, que ostentava um ar cansado e pensativo, olhando para baixo. — Obrigada por não desistir de nós… Por ter lutado por nós… E por cuidar de mim, me aquecido… Mesmo que tenha te custado um bico de papagaio ou uma hérnia. — Finalizou com um sorriso.
Anna correspondeu o olhar por alguns segundos, abriu seu casaco e tirou a adaga de Jennifer, entregando-a.
— Tome, precisei pegar emprestada durante a noite.
— Fique. Você perdeu as suas ontem.
— Não tem problema, tenho outras.
Jennifer guardou em sua bota.
— Você coleciona?
— Não, as fabrico.
— Sério?
— Tenho uma oficina de forja em casa. Meu pai era cuteleiro e me ensinou a fazê-las.
Jennifer animou-se com a abertura de Anna, inclinou-se na direção dela para continuar a conversa.
— Caramba, que legal! E você faz todo tipo de facas ou somente adagas?
— Basicamente adagas, pequenos punhais, espadas, shuriken, aquelas estrelas com pontas afiadas, sabe?
— Sim! Estrelas ninjas são ótimas! É tudo para uso próprio?
— Onde eu usaria centenas de facas? Eu as vendo.
— Deve ser um bom negócio nos dias de hoje, não?
— Já foi melhor.
Jennifer voltou a se encostar nas sacas.
— E o que você faz quando não está forjando lâminas? — Tentava reacender a conversa.
— Coisas… Sei lá. Leio.
— Gosta de sair para fazer coisas no final de semana?
— Raramente. Às vezes algum bar na Cidade Velha.
— Eu prefiro os pubs do Centro. Não que você tenha perguntado.
Anna desfez o semblante sério, deu uma boa olhada para Jennifer. Ajeitou a posição, subiu uma perna. Se deu conta da recuperação rápida que Jennifer teve, sentada ali do seu lado com um olhar brilhante, parecia cheia de vida.
— Qual seu pub preferido? — Perguntou Anna, com um tom mais descontraído.
— Nós costumamos ir ao O’Reyes, um pub costa-riquenho.
— Costa-riquenho?? — Anna parecia incrédula.
— Sim, o dono é o Oscar. Libera uns chopes de vez em quando. E nunca nos expulsa! — Falou rindo. — Ele é um cara legal… Você curte chope, não?
— Sim.
— É canadense, mas é bom, acredite. O famoso chope Bordeaux.
Anna não conseguiu segurar o riso, olhou com surpresa para Jennifer.
— Jesus Cristo, isso está errado em tantos níveis… Um pub costa-riquenho que vende chope canadense, chamado Bordeaux!
— É… Você falando assim, tudo junto, até que soa estranho. Não tinha me dado conta.
— Sério?
— Eu vou lá para beber, e não para fazer uma análise geopolítica do local.
***
Com a guerra, as fronteiras entre os países aliados se esmaeceram. Por fim, os Estados Unidos, que sempre tiveram um controle rigoroso da entrada de estrangeiros, faziam um apelo para que pessoas de outros países migrassem para lá, já que sua população havia sido dizimada e muitos americanos fugiram para países menos visados pelo eixo do mal.
Essa abertura resultou numa miscigenação em grande escala, além de um grande choque cultural. Apesar da sensação de insegurança e pouca credibilidade no governo, havia um pensamento uníssono de reconstrução em toda a América. O imigrante que antes era visto com certo repúdio, agora era visto como os novos pilares da reedificação do país.
Mas o mundo parecia ainda assustado demais para reagir, as grandes nações se reerguiam num ritmo lento demais.
***
A paisagem bucólica não mudava muito no decorrer da viagem: campos que um dia já foram plantações, agora estavam abandonados. Algumas casas que viraram escombros, outras parcialmente destruídas, contrastavam com aquelas que ficaram de pé e, por serem habitadas, mantinham um bom aspecto.
Anna percebeu que o destino se aproximava, era meio-dia e as nuvens haviam ficado cada vez mais distantes, deixando o céu de anil se mostrar por completo.
— Onde pulamos? — Becca questionou, enquanto se levantava. Deu uma olhada pela porta.
— Pulem comigo. Tanto faz se pularem um pouco antes ou depois, a vila de vocês não ficará mais perto. Pelo menos assim eu oriento vocês até chegarem na minha casa. E de lá acredito que vocês conseguem achar a rodovia sozinhos, não conseguem? — Anna respondeu, terminando a frase como um questionamento para Jennifer.
— Ah sim, claro. Da sua casa sabemos continuar até nossas casas, meu sentido de localização interno é excelente.
Anna deu o sinal e todos pularam, em fila. Fizeram o mesmo caminho do dia anterior entre a vegetação rasteira, chegando até a casa dela.
Chegaram até o pátio frontal da casa, um a um foram agradecendo Anna, com um aperto de mão.
— Não precisam ir pelo campo para chegar a rodovia, peguem esse caminho aqui na frente da minha casa, vai dar na estrada. — Anna orientava, apontando para uma pequena estrada de chão batido, que saia do seu portão de ferro.
— Você foi nossa heroína, você sabe disso, não sabe? — Bob segurava a mão de Anna, após cumprimentá-la.
— Seremos eternamente gratos pelo que fez por nós. Prometo que vou trazer um bolo aqui para você qualquer dia desses. — Becca emendou, rindo.
— Bolo? Você não sabe fazer nem ovo cozido. — Jennifer rebateu.
— Jenny, estou tentando ser gentil, ok? — Becca disse e afastou-se para que Jennifer se despedisse também.
— Não sei fazer bolo, mas obrigada por tudo, Anna. — Por fim, Jennifer se despedia, lhe estendendo a mão. — Enfiamos você numa baita enrascada e mesmo assim você nos ajudou até o fim, vou indicar seu nome para o Nobel da Paz.
— O que importa é que todos estão de volta, são e salvos, com ou sem bolo. Voltem para suas casas e continuem alertas. Pensem duas vezes antes de desafiarem uma milícia de Titans. — Anna terminou falando um pouco mais alto, para que todos ouvissem.
O grupo abriu a portão alto e pesado que dava para a estradinha, iniciando a caminhada de volta, que seria de quase quatro quilômetros. Não tinham pressa em seus passos.
Haviam caminhado apenas duzentos metros, quando Jennifer parou e olhou para trás incomodada.
— Vão andando, esqueci uma coisa lá, já volto. — E saiu correndo de volta à casa, Anna já havia entrado.
Jennifer entrou ofegante, viu Anna saindo da cozinha com uma garrafa de água na mão.
— O que houve? — Anna perguntou, surpresa.
Novamente Jennifer deu um abraço urgente, quase sofrido, em Anna, como da vez que ela havia achado que a gárgula a matara.
— Obrigada… — Falou baixinho, ainda a prendendo com os braços às suas costas.
Quando se soltaram, Jennifer a encarou com uma expressão urgente.
— Vou ver você de novo? — Perguntou.
— Se você assim quiser, claro. — Anna respondeu, com uma voz branda. — Fiquei bastante curiosa para conhecer o pub costa-riquenho.
— Fechado então. É o melhor chope canadense que você irá provar.
— Onde na vila que você mora? Na parte baixa?
— Sim, o último prédio cor de tijolo da rua principal.
— Ok então, eu passo nesse sábado e te pego.
— Mas você disse que não tem carro.
— E não tenho.
— Já sei, você tem um cavalo, não é? Cavalos e espadas. — Jennifer imitou o gesto de cortar o ar com uma espada.
— É… Digamos que sim.
Jennifer saiu correndo de volta aos seus amigos. E a partir daquele dia seu mundo nunca mais seria o mesmo.

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